domingo, 5 de novembro de 2017

Seguro morreu de velho

Uma vez tirei férias e fui pra Recife. Eu estava com um grupo fazendo excursão pela cidade e estava sentindo um incômodo. Nada escatológico. Eu olhava pro guia, que tinha mais ou menos a minha idade, e sentia vontade de dar um murro nele. E assim levei o passeio.
Na hora do almoço, fomos a um restaurante de pratos típicos da região. Edmilson, o guia, se sentou comigo e mais dois turistas. Enquanto esperávamos os pedidos, começamos a conversar.
“Seu Norberto, percebi que o senhor não parecia bem durante o passeio da manhã. Talvez seja melhor trocar o prato. Esse que o senhor pediu é meio pesado. “
“Não é nada no estômago “, respondi.  “É uma sensação. Por acaso já nos conhecemos? “
“Eu já morei em São Paulo. Tinha uma fábrica lá, junto com meu irmão. O senhor não se lembra de mim? “
Olhei pra ele, tentando puxar pela memória. Fiz que não.
“Faz uns quinze anos. A minha firma tinha uma conta no banco (...) lá do Jardim (...).
Tomei um choque. Eu trabalhei naquela agência na mesma época. E lembrei.
Eu era verde de banco, estava aprendendo o serviço. Já conhecia o Edmilson de vista, cumprimentava-o quando ia lá, mas não tinha muito contato. Certo dia, a gerente o levou à minha mesa e disse que ele ia fazer um seguro. Ele não me encarava nos olhos, mas de qualquer maneira, seguro de vida era uma das metas do mês.
Fiz a apresentação dos tipos existentes e valores de prêmio (mensalidade) e o valor correspondente a ser recebido pela família caso ele morresse.
Na época, apesar de já existir o Código de Defesa do Consumidor, era comum a prática da venda casada. Ele não prestou muita atenção nos meus argumentos de venda e escolheu o valor mais baixo. Assinou o contrato do seguro de vida e voltou pra mesa da gerente pra fazer o negócio que lhe interessava.
Na hora que vi sua linguagem corporal, pensei: vai dar merda.
Dito e feito! Seis meses depois, ouvi de passagem que a conta jurídica do cara estava com operações em atraso. O seguro acabou cancelado e não pensei no sujeito durante três anos.
Por algum motivo, consultei o cadastro dele, vi que tinha aberto uma conta física e estava morando em outro Estado. Xinguei de safado e deixei pra lá. Nunca mais pensei nele... até aquele dia.
“Como você virou guia turístico”, perguntei eu.
“Foi graças ao FIES. Depois que a dívida caducou e o meu nome ficou limpo, eu fiz cursinho e passei na faculdade de Turismo. Eu fiz das tripas coração para manter as contas em dia. Além da faculdade, eu tinha uma família para sustentar. “
“E como foi isso? “
“Fiz cursos sobre como organizar o orçamento doméstico. Além disso, descobri um grupo chamado Devedores Anônimos. “
Fiquei curioso. Já tinha ouvido falar dos Alcóolicos Anônimos, do Al-Anon, mas nunca me ocorreu que comprar (e, consequentemente, se endividar) poderia ser uma compulsão. Infelizmente ele não teve como quitar ou sequer negociar as dívidas da fábrica. Isso impactou muito no resultado da agência no ano em que elas foram lançadas em prejuízo.
Ouvi sobre as características da reunião, as metas sugeridas (parece que em tudo que fazemos temos que traçar metas) e em como isso melhorou sua qualidade de vida.
O ex-cliente da minha antiga agência não levou um soco e foi nosso guia durante o resto da minha estadia em Recife. Tivemos outras conversas muito interessantes sobre o mercado financeiro, o consumismo, a situação política do Brasil, nossas famílias.

Cheguei à conclusão de que a falência da fábrica foi seu fundo do poço e dali em diante, sua jornada foi apenas para cima.

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